26/10/06

Glória do Ribatejo na rota da Guerra-fria




















Este artigo foi encontrado por mero acaso na Revista A CABRA , que pertence à Universidade de Coimbra e foi publicado em Maio de 2006. Os autores deste artigo são Rui Antunes e Sofia Piçarra.
Trata-se de uma resenha histórica sobre a importância da RARET no contexto da Guerra- Fria.
Aqui fica o artigo com algumas fotografias
Roberto Caneira

“O maior posto emissor da Rádio Europa Livre funcionou durante quase 50 anos em Glória do Ribatejo, a 70 quilómetros de Lisboa.
O complexo transmitia incessantemente programas de ideologia capitalista para os países dominados pelo comunismo

Quem se dirige ao local onde, durante décadas, se ergueu um majestoso complexo de antenas de rádio, depara–se com uma aldeia fantasma que não assusta porque é visível que ali viveu muita gente feliz.
Actualmente, nos cerca de 196 hectares, resistem para contar a história diversas infra– estruturas que serviam de suporte ao centro radiofónico, já desmantelado. É difícil imaginar que nesta pequena aldeia do Ribatejo se desenvolveu parte da história da Guerra Fria.
Sob domínio da agência de segurança americana CIA, mas longe dos olhares indiscretos dos espiões soviéticos, foi criada em 1951 a Raret - Sociedade Anónima de Rádio–Retransmissão, uma arma imponente ao serviço dos norte–americanos numa das mais importantes batalhas do conflito, a guerra da informação.
O local foi escolhido por ser próximo da capital e discreto, já que este era um projecto semi–secreto. A Rádio Europa Livre (REL), tinha sede em Lisboa, de onde partiram as primeiras gravações para a Glória, envolvidas em algum sigilo. Durante toda a sua existência, a REL manteve actualizada uma audioteca com o espólio da organização.
Segundo o engenheiro electrotécnico da antiga Raret, Manuel Cardoso, 51 anos, “os Estados Unidos injectavam propaganda política nos países de Leste” através deste colosso radiofónico, “um dos maiores do Mundo”.
Os conteúdos programáticos eram persuasivos, de forma a seduzir os ouvintes dos países–alvo para as “vantagens” do mundo ocidental. Notícias censuradas, ou a leitura de obras proibidas pelos regimes comunistas faziam parte da grelha da REL, gravadas com a voz de exilados políticos.
A Raret estava ligada a um importante centro receptor, a Maxoqueira (em Benavente), que acolhia as emissões provenientes de Munique, onde se encontrava o edifício principal da Rádio Europa Livre. Os programas eram assim enviados da Alemanha para Portugal, sendo imediatamente retransmitidos para os países do bloco comunista.
No início, as antenas estavam direccionadas para a Roménia, Checoslováquia, Polónia, Hungria e Bulgária. Mas, a partir dos anos 60, os programas passaram a ser emitidos em 18 línguas distintas para todos os países sob a influência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), incluindo os do Médio Oriente.
O ex–técnico de serralharia da Raret, Armando Oliveira, 73 anos, trabalhou desde o primeiro dia na sociedade. O funcionário, que tinha livre–trânsito no complexo, assume que “no local eram recebidas informações cozidas de acordo com os interesses do governo dos Estados Unidos”, e acrescenta que havia espiões norte–americanos nos países de Leste “que informavam os representantes da Glória se a emissão estava a ser ouvida correctamente.”
O antigo coordenador–chefe do serviço de antenas, Alfredo Silva, 72 anos, recorda que, numa cerimónia presenciada pelos funcionários, um dos administradores dizia no seu discurso que o financiamento do projecto era garantido por “um dólar dado por cada cidadão americano, principalmente os mais pobres, para esta causa.”
Na década de 50, a CIA não admitia liga-ções ao projecto. Porém, nos anos 60, a agência secreta americana assumiu o envolvimento, ainda que com algumas reservas.
Paralelamente à construção das primeiras antenas em Portugal, o congresso americano criava uma fundação responsável pela angariação de fundos para a manutenção da Radio Free Europe (RFE).
A “Cruzada para a Liberdade” tinha como símbolo um sino, que percorreu 21 cidades americanas, onde os cidadãos eram encorajados a escrever mensagens e a contribuir com dinheiro. Os lucros não foram significativos, mas no final da campanha, o sino seguiu viagem para a Europa Ocidental.

A América em Portugal
Com as antenas, chegaram também os símbolos do capitalismo. A prosperidade trazida pelos americanos elevou o nível e as condições de vida dos habitantes locais. A ruralidade e o analfabetismo da zona foram substituídos pela formação profissional. Armando Oliveira, que trabalhou 42 anos na sociedade, explica que nos anos 60 “os trabalhadores já dispunham de uma escola primária, uma escola industrial, centro de saúde (24 horas por dia), maternidade, uma área residencial”, e, a nível lúdico, “usufruíam de um bar e uma piscina privada”.
Os salários dos funcionários da Raret eram muito acima da média nacional da época. Alguns trabalhadores chegavam a receber vencimentos superiores em 200 por cento, quando comparados com o rendimento de um trabalhador agrícola. As regalias sociais também faziam parte dos privilégios de quem prestava serviço no complexo.
A administração financiava o passe dos transportes públicos aos funcionários e familiares mais próximos, e distribuía suplementos monetários de forma regular.
O espaço era administrado a partir de um edifício central em forma de “T”, constituído por diversos escritórios, oficinas de electromecânica e electrotecnia, e pelo edifício que albergava a Guarda Nacional Republicana, responsável pela segurança do complexo.
Com uma dimensão de oito mil metros quadrados e diversas estruturas paralelas a estas, actualmente, os edifícios continuam intactos, ainda que desprezados.
“Uma vila dentro da vila”, explica Alfredo Silva, que considera que a Raret foi benéfica para a região. “Mas não sei se foi benéfica para o mundo.”

O Cravo e a Coca–Cola
No período conturbado que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, o pequeno “oásis democrático” que se vivia há já muito tempo no complexo administrado por americanos sofreu alguns percalços. Símbolo do capitalismo em Portugal, a Raret era um alvo privilegiado dos ataques de um país que sorria abertamente ao comunismo, após várias décadas de regime ditatorial.
Nos dias que se seguiram à “Revolução dos Cravos”, a importância política do centro retransmissor ditou o envio imediato de tropas para o recinto pelo Movimento das Forças Armadas, que controlava o país, de forma a proteger a integridade do posto da REL.
Apesar disso, nos anos seguintes, a sociedade sofreu duas tentativas de atentado através de engenhos explosivos colocados nas imediações dos emissores. Três petardos amarrados a uma antena foram o primeiro sinal de aviso. Ainda que um deles tenha explodido, a antena aguentou o impacto.
Já na década de 80, foi detectada uma bomba junto a uma das entradas do complexo. Na altura, o acto foi atribuído às FP-25 de Abril, mas tal nunca chegou a ser, verdadeiramente, confirmado.
Os incidentes registados e o clima revolucionário apenas contribuíram para o reforço da segurança, mas o normal funcionamento do maior posto emissor da Rádio Europa Livre nunca foi colocado em causa.

O declínio da Raret
Com a queda do muro de Berlim, iniciou- –se a decadência e o desmantelamento progressivo da estação. Manuel Cardoso recorda que, “quando os regimes comunistas se começaram a democratizar, a Rádio Europa Livre deixou de fazer sentido”. Os equipamentos foram enviados para novos postos transmissores da REL, sedeados na Grécia e no Pacífico.
O destino deste palco histórico da Guerra Fria é a futura construção de um condomínio privado e um campo de golfe, cujas obras devem começar já na próxima semana.
Uma década depois, apenas restam partes da mega estrutura. A Rádio Europa Livre ainda existe, mas as infra–estruturas que a difundem estão noutros países, já que as antenas norte–americanas estão agora viradas para os interesses no Médio Oriente.”

2 comentários:

António disse...

Hoje, com 65 anos idade, não sinto saudades dos tempos em que estive ao serviço dos interesses dos Estados Unidos da América (Os Polícias do Mundo). Nas décadas de 1950 e 1960, o obscurantismo era de tal ordem que nunca me interroguei por que existia a RARET. Ao tomar consciência política e consciência de classe, tomei a conclusão que o imperialismo americano é do pior que existe à face da terra. Com o desaparecimento da URSS, quem ficou a perder foram os povos de todo o planeta e aí temos de novo o fascismo a dominar a seu belo prazer este planeta. Abaixo o Imperialismo. Por uma Sociedade Socialista!!!

António disse...

Quando ainda criança, lembro-me da construção da estrada principal de Marinhais-Raret. Só anos mais tarde essa estrada chegou à entrada da Glória do Ribatejo. Na minha ingenuidade eu reparava naquela obra como um grande acontecimento na minha aldeia. Não soube o que estava por de trás dessa obra ao longo dos anos, por ignorância e obscurantismo a que as populações, na sua grande maioria, analfabetas, foram votadas. Só mais tarde, quando a tropa me bateu à porta e depois da recruta fui mobilizado para a guerra colonial em Angola onde passei os piores 28 meses da minha vida, comecei a tomar consciência política ao tomar partido - o Partido Comunista Português que, na clandestinidade, lutava contra a guerra colonial,contra a censura, contra o Polícia Política (PIDE) de tão má memória, pela liberdade dos presos políticos, pelas liberdades e a democracia em Portugal, por melhores condições de vida e de trabalho, dos trabalhadores e da maioria do POVO português. Ao fazer uma retrospectiva do passado, dei por mim a recordar, quando ainda criança, que aquela estrada principal (e única) em Marinhais, era para servir o imperialismo americano, com os centros emissores na RARET, contra o Primeiro Estado Socialista do mundo - a União Soviética! Com o desaparecimento da URSS, quem ficou a perder nesta luta desigual, foram os POVOS de todo o Planeta e o Mundo tornou-se mais perigoso com a crescente ameaça do imperialismo dos Estados Unidos da América. Na certeza, porém, os POVOS resistem e VENCERÃO!!! Disse